O Mar e a Terra

O mar chega até onde a vista alcança, diz-nos a imaginação, mas para conseguirmos alcançar aonde a vista alcança, temos que ter os pés firmes em qualquer coisa. E o mar chega até onde podermos levar os nossos pensamentos, as nossas ideias, pelos ventos que a nossa imaginação cria, no entanto, a imaginação para poder ter um sentido, precisa no entanto de um guia, porque sem guia não consegue encontrar um rumo. E para poder encontrar um rumo, é preciso ter segurança em algo firme, seja na nossa imaginação seja na terra firme.

E o mar quer chegar até onde pode, sendo que na sua imaginação pretende cobrir toda a Terra, até não existir nenhum grão de areia neste mundo que não sinta o seu toque. A Terra revolta-se contra o intento do mar e contra si lança o fogo das suas entranhas, provocando convulsões, porque apesar de tudo é sobre a Terra que o mar se encontra. Com o fogo a Terra lança também sob a forma líquida o seu elemento sobre o mar, o qual na presença do elemento do mar arrefece e endurece, dando corpo à vingança da Terra sobre a ambição do mar. Das suas entranhas a Terra vomita o seu alimento, trazendo de volta à superfície o que já foi da superfície.

Da imensidão do mar vem o inesperado e o inaudito, pois do mar estranhas criaturas foram engendradas, já a imensidão do tempo se esqueceu. E essas criaturas que não encontraram no mar sustento invadiram a Terra, mas em vez de quererem molhar a Terra trouxeram o mar dentro de si, fechado dentro da pele. E por todo lado essas criaturas que do mar vieram com a mesma ambição do mar, pois por ele foram criadas mas por ele também foram esquecidas, mas transportam o mar dentro de si, largando-o por todos os locais da Terra por onde deambulam. Nela deixam a saliva, o suor, o sangue, saliva, e o sémen, que é a semente que estes seres que carregam o mar e as suas volições dentro de si conseguem multiplicar-se sem ao mar precisarem de regressar. O mar é um lutador infatigável, e por todos os lugares do mundo a sua voz se faz sentir. Às vezes descansa, mas volta ao seu frémito e às suas investidas na senda do seu objectivo, cego e inatingível. A Terra volta a resistir, mas o Mar negociou junto do seu irmão Ar auma aliança em que o Ar permite que minúsculas partes de Si sejam transportadas com a ajuda do seu irmão Ar, e este por este transportadas pelo seu sobrinho Vento, que no seu portento permite puxá-las por cima da Terra e por esse intermédio chegar a todos os lugares acima da Terra, mesmo os mais elevados e escarpados e alcançar todas as frostas do mundo, que se deseja redondo, mas que sem o nível e a consideração dos que não conseguem não se conta a sua história. E essas partículas de mar à Terra regressam, farto o Vento que está de carregá-las, cansa-se e larga-as sobre a Terra, elas então emaranham-se pelos interstícios que toda a Terra apresenta, de entre cada grão com outro grão, de maneira que a senda do mar continua de chegar todos os cantos da Terra não pára, estando os mais recônditos e subterrâneos lugares das entranhas da Terra não esquecidos. Mas a Terra não os deixa vencer e invadir, em lugar disso obriga-os a juntarem-se em pequenos feixes de volta para onde vieram. Pelas nascentes a àgua à superfície regressa, sem no entanto arrancar um pouco da Terra consigo: sedimentos eles se chamam, e de acordo com a gravidade e a vontade da Terra, eles podem ser resgatados de volta para a Terra ou serem para sempre prisioneiros do Mar. Mas o mar não se lhes permite ficarem para sempre no seu seio, pois isso seria uma ajuda na sua derrota pela Terra, de modo que o mar os açoita para regressarem à Terra. No entanto, a Terra não deixa que eles avancem , pois desconfia que estas suas partículas já não sigam os seus intentos. E então o Mar e a Terra chegam a acordo sobre o que fazer com eles: ficam para sempre exilados numa zona que nem é da Terra nem do Mar: onde se disputa a eterna batalha dos elementos entre Terra e Mar eles para sempre ficarão esquecidos e desviados da frente para os lados pois nem a Terra nem o Mar os querem, para lá ficarão para sempre, mas não no mesmo sítio: por todas as praias deste mundo eles viajarão, e onde a Terra e o Mar chegarão a acordo para as formas que desenharão na paisagem: linhas o mais rectas possíveis, de forma que do lado de Terra haverá Mar e do lado do Mar haverá Terra: parece que o mundo ficou de pernas para o ar, mas não será assim: mas o que será da Terra continuará a ser da Terra e o que será do Mar continuará a ser do Mar, no entanto, as fronteiras são volúveis e transitórias: cada ano que se acrescenta a guerra infindável entre Mar e Terra continuará: novas batalhas serão travadas com avanços e recuos, porções do Mar ficarão prisioneiras em Terra, assim como porções de Terra ficarão rodeadas de Mar, resistirão mas acabarão inevitavelmente por ser vencidas, emagrecendo e emagrecendo a cada translação completa sobre o radioso: até que um dia, de tão magros que são se desfazerão, quais castelos de cartas erigidos sobre o Mar. Mas o Mar também mantém as suas investidas sobre a Terra: e nalgumas incursões mais corajosas e intrépidas conseguirá avançados portentosos, mas será obrigado a recuar cobardemente deixando no entanto a marca da sua mordida se desvanecendo lentamente com a ajuda dos intrépidos fenómenos do Ar, que em conjunto com as investidas do Mar pelo Ar, degradarão aos poucos os vestígios da marca deixada pela vitória de um instante sobre a Terra.

Então a Terra e o Mar chegam a acordo para definir as suas fronteiras, e nas suas fronteiras um longo e extenso areal separando a Terra do Mar aparecerá: cordas estendidas, no entanto soltas, deixando pequenos braços do mar penetrar por entre as suas reentrâncias e aberturas, mas perderão a sua força quando o fizerem. Chegarão e inundarão onde os deixarem chegar, mas no acordo entre Terra e Mar os filhos do Mar não poderão levantar o seu estrepitoso clamor de guerra sob a Terra. No entanto, as criaturas que vieram do mar e agora são da Terra sentirão sempre a fúria do Mar quando deixarem a zona desmilitarizada e pelos seus altos domínios penetrarem: sentirão a fúria alvoraçada do Mar sempre que se atreverem a penentrar em seus domínios. Nada ficará sem um preço.

Nos lugares onde os pequenos braços de mar ficarão prisioneiros da Terra, estes, e sem o ímpeto da vontade da maré, em pequenos trechos tremulezentes e fasicantes se tornarão, qual oiro em água ao contacto com o Sol da Manhã.

As criaturas que o mar criou e que a Terra conquistaram, prosperaram sobre a Terra mas no interior do seu ser, continuaram com o programa inicial com que o Mar as criou: com o seu ímpeto e vigor conquistaram também o Ar, e é do Ar que regressam a Terra para aproveitarem todos os frutos que o mar agora lhes oferece, de forma que o Mar na realidade não as esqueceu: o alimento que lhes dá sustento vem no entanto do Mar: na forma de pequenas criaturas, umas com a carne nua, outras protegidas com concha, mas tudo ofertas do Mar de forma que mostra que o Mar não se esqueceu dos seus filhos, e a eles continua ligado para lhes fornecem aquilo de que tanto precisam.

Avança, pois, avança o Mar sobre a Terra, mas a Terra vinga-se largando os sedimentos trazidos pelo regresso dos filhos do Mar nos rios. Os filhos do mar largam os sedimentos ao litoral e estranhas formas aparecem: é a vingança da Terra: pequenas formas aparecem nas traseiras nas linhas atrasadas do exército de vagas marinhas, são as pequenos filhos da Terra que de pequenos aglomerados que se vão constituíndo por acreção. Nas suas costas, os exércitos marinhos são atraiçoados pelo inesperado esquema de contra-ataque da Terra: os sedimentos vão criando pequenas ilhas de areia fina que, com o tempo vão engrossando. Vencido pelo ataque nas suas traseiras o mar tem que bater em retirada, deixando no seu recuo trechos do seu avanço que só pelo ataque da erosão do Ar desparecerão: falésias de areia compactada que parece cimento mas que se desfaz como pó ao toque. Dunas endurecidas que são mêdos mas não metem medo nenhum.  Pequenas carcaças de criaturas esquecidas de tempos antiquíssimos e de que não há menção alguma são reveladas pela investida do Vento: não passam de vestígios petrificados de um lugar que dá prova de que já foram domínios do Mar: mas no entanto, foram vencidos e engolidos pela Terra: mas no entanto, admirada pela criatividade a Terra esta logrou que não se esquecessem.  

Na interminável luta de avanços e recuos entre o Mar e a Terra apareceu o bicho homem que com o seu intento de largar a terra e lançar-se pelo mundo desconhecido, como criatura que leva o Mar dentro de si e ao Mar portanto regressa, e ele pretende fazer o que o Mar ambiciona: levar a sua voz a todos os cantos do Mundo, mesmo aqueles que já vão então além do próprio Mundo em si. O bicho homem julga que consegue fazer o que o seu pai Mar faz e continuará sempre a fazer: tenta, tenta, e volta a tentar assaltar os lugares que nunca alcançou. Existem, no entanto, locais que ele nunca alcançará: estes ficam nas almas dos espíritos que foram preenchidos pelo éter do mar: e em volta deles são construídos muralhas e fortes que permitam protegê-los das agressões daqueles que os tentam enfranquecer. As fraquezas não podemos mostrar: têm de ser esquecidas e escondidas com rigor para nunca mais termos de sofrer. Em volta delas todos nós construímos as nossas fortalezas que temos de defender dos constantes assaltos. Fortalezas essas que não resistem ao tempo mas que depois dentro das quais nos fechamos, se tornam prisões dentro do nosso ser, tornando-se fortalezas para dentro e não apenas para fora. São todas essas fortalezas que todos construímos dentro de nós e que acabam por nos fazer morrer dentro delas.

FOTO DE ABERTURA: Vista a sul do Forte de Peniche