Habira, “a escondida”

OU pelo menos era como lhe chamavam, mil anos antes…. desde que os habitantes da outrora florescente cidade de Balsa haviam abandonado a sua cidade à beira-mar plantada, que se havia desenvolvido com todo o comércio trazido pelo mar e a proximidade das costas mauritanas, ali bem próximas, para além de receber o comércio que vinha do norte da Europa numa altura em que o outrora e agora extinto Império Romano dominava toda a Europa, servindo a magnífica cidade do sul da Lusitânia de ponto de paragem e reabastecimento para os mercadores.

Mas parece que o Mar havia decidido finalmente cobrar o seu preço  ao fim de todos aqueles séculos de prosperidade. Após destruir impiedosamente a zona ribeirinha de urbe, com o seu fórum, coliseu e porto incluídos, os seus sobreviventes decidiram afastarem-se o mais possível do Mar, para norte e para o interior e o local eleito foi o antigo povoado deixado pelas fenícios situado na primeira colina cimeira na margem direita sobre o rio mais próximo, que hoje conhecemos por Gilão. O tempo que levava de abandono era grande e os balsenses sobreviventes haviam esquecido o seu nome. O rio a partir daquela colina permitia ter uma visão ampla a partir do ponto onde o rio se alargava de tal forma para dar lugar a um imenso mar interior, na realidade um estuário, no qual desembocava outro curso de água, que hoje conhecemos por Almargem. O pequeno mar da desembocadura do Gilão era ele, próprio, abundante em todo o género de peixe e marisco, permitindo o sustento da pequena população de poucos milhares de almas que haviam sobrevivido dos antigos balsenses, evitando os riscos da pesca em mar alto.

Para além de mais, a presença de uma ponte mesmo junta da colina, apesar de estar em muito mau estado e que havia sido edificada pelos romanos, permitir-lhes-ia  usufruir da vantagem de uma via de comunicação terrestre com outros povoados próximos para leste como Cacila e, junto ao Rio Anas (agora chamado uádi-Ana), Al-Qasruh, a antiga Baesuris, hoje Castro Marim e para oeste, Ossónoba, agora rebaptizada Harúne (hoje Faro) pelo conquistadores árabes e berberes, que poucos séculos haviam atravessado as Colunas de Hércules e dominado todo o Reino Visigodo da Ibéria em menos de dez anos. Uma nova religião de deus único, mas com nome diferente, Alá, havia sido imposta pelos conquistadores provenientes do outro lado do mar.  A nova vila fortificada, erigida no alto da primeira colina dominante sobre o Rio e longe dos perigos levantados pelos humores do Grande Mar, passava despercebida pelos navegantes no mar alto. Mas o povo da nova cidadela fortificada construiu templos para orar a Alá, mas a memória da sua antiga morada permaneceu ainda viva graças a lendas contadas pelos mais velhos, e o povo procurou consolação em Alá, para qu’Este os protegesse de uma nova investida do Oceano. Pensando terem ficado ao abrigo do mar, deram à sua nova morada o nome de Habira, que na língua da sua nova religião que adoptaram significa “a escondida”. Escondida e abrigada de todos os perigos que haviam destruído antes a sua outrora querida e magnífica Balsa, a qual não passava agora uma cidade fantasma, onde os habiri se deslocavam de vez em quando para reaproveitar a pedra já trabalhada e talhada da sua antiga cidade destroçada pelo mar, para a construção das suas novas habitações na sua nova morada junto do rio. De certa forma, Habira era como uma fénix renascida feita da pedra reutilizada que antigamente pertencera aos edifícios da outrora florescente Balsa.

Mas apesar de todos os seus percalços, os habiri não puderam um dia fazer face a uma invasão de homens altos, pálidos, e de longos cabelos claros que apareceram subitamente desembarcando do interior de barcas à vela e remos adornadas com cabeças de animais ferozes à  proa. Estes homens, com vestes de couro, vinham armados com machados de lâmina curta e estreita à cintura que usavam como arma de arremesso fatal. Estranha gente vinda do norte, homens rudes, altos e pouco dados a emoções, com vontade inumana de saquear, pilhar e destroçar. Com uma disciplina fria e atroz, saquearam toda a vila e a mesquita sem dó e piedade, levando consigo as mulheres e crianças para servirem de escravos ou satisfazerem outros caprichos. Os sobreviventes ao assalto dos homens do Norte despertou nos habitantes da vila do topo da colina a ideia de que a sua ideia inicial de se afastarem do mar não havia surtido efeito, pois os perigos que advinham do Mar  podiam muito bem subir com o rio, como a maré. Dessa forma, decidiram reforçar as muralhas e erigir uma torre de vigia mesmo à entrada da ponte. E, para que os sentinelas que fizessem a ronda pelas muralhas não tivessem de a descer para atingir a torre, ergueram um pano de muralha com um arco por baixo que ligava o perímetro das muralhas à nova torre, que os vindouros viriam a conhecer como Torre do Mar. Desta forma, os vigilantes poderiam ver em primeira mão, quaisquer ameaças vindas do Mar antes que estas pudessem constituir um perigo para os seus habitantes. Mas os antigos habitantes de Balsa, já com pouca memória da sua antiga portentosa cidade, entenderam que não podiam continuar a voltar costas ao Mar e decidiram deixar os seus receios de lado, e começaram lentamente a restabelecer os seus antigos laços com o Elemento líquido, perdidos desde a ruína de Balsa. Lançaram-se na construção de fustas e barcas que lhes permitiam atingir o Mar a partir do Rio. Com os receios colocados de lado, aperceberam-se que podiam finalmente confrontar com os perigos do Mar enfrentando-o no seu elemento. Preparando-se para uma nova eventual invasão de povos do Mar, começaram a apetrechar os seus barcos com instrumentos de defesa. Um arqueiro acompanhava sempre todas as barcas e cada embarcação possuía pelo menos dois pescadores com uma curta cimitarra escondida debaixo dos seus andrajos marítimos. Para o que desse e viesse, estariam prontos para todas as provações que o traiçoeiro Mar ainda teria na sua liça para investir contra os antigos balsenses, agora rebaptizados de habiri.

A presença de uma galé vinda de ocidente em mar alto lançou o alarme entre a pequena frota de pescadores tornados milicianos. Com seis embarcações  e a ajuda do vento alcançaram a galé, que, atrapalhada, não pôde resistir às flechas dos habiri. Rapidamente os habiri abordaram e entraram a bordo da galé, matando todo a pouca resistência que encontraram, pois a galé pouca defesa própria possuía, pois não estava à espera, estando as duas margens do Oceano sob o domínio do mesmo credo, enfrentar um invasor em mar alto. Os habiri, levados apenas pela sua necessidade de defenderam, acabaram, sem o desejar, de cometer um crime. Mataram toda a tripulação, e, procurando despojos do navio que pudessem aproveitar, encontraram arcas repletas de moedas de prata, para além de panos de fina seda. O seu esforço havia sido recompensado. Sem o saberem, e o desejarem, a necessidade de auto-defesa dos habiri havia-os transformados de inocentes e desterrados homens  em implacáveis e cobiçosos piratas.

Queixas chegaram aos ouvidos de Abdul Ramane, grande califa do Al-Andaluz, em Córdoba, de que a costa do Gharb era esconderijo para piratas e outros malfeitores que roubavam a prata adquirida como pagamento de imposto cobrado pelos almoxarifes no comércio dos portos da costa oeste do Gharb, de Sakkrah (Sagres) para norte até à zona de fronteira com os sanguinários cristãos, perto de Portucale, na venda dos produtos originários dos portos mediterrânicos do Andaluz.

Um grupo de navegantes ao serviço do califa foram enviados pelo grande soberano para limparem a costa dos piratas. Muito tiveram que sofrer os homens do califa para encontrarem o seu esconderijo. Calcorrearam toda a costa desde Gibraltar até Al-Sakkrah e não puderam descobrir nada  que se parecesse com o covil dos piratas. As investidas destes continuaram sem que a Armada do Califa pudesse encontrar vestígios que indicassem rastos deixado pelos seus ataques. A marca destes era sempre a mesma: os barcos atacados apareciam no fim na forma de cascos queimadas e carbonizados com as quilhas voltadas para cima. Até que o vizir da frota de Abdul Raman tomou a decisão de em cada galé que passasse no sul do Gharb seria acompanhada por um pequena barca, navegando a sul da mesma, pois se os malfeitores provinham de norte, como quem sai de um porto na costa sul do Gharb, não conseguiriam ver a pequena embarcação militar escondida a navegar a sul da galé com a carga preciosa do califa. Continue reading

Era para ser um dia de todos os santos normal ….

Acontecera em pleno século XVIII, num dia feriado, 1 de Novembro, estava a ocorrer missa na pequena capela do forte, e a guarnição nesse tempo era composta por cerca de dez homens, 7 artilheiros, o cabo, o sargento e o maioral,  o governador da praça-forte que por tal o ser é dele o único nome que esta história regista, um tal Vicente da Fonseca Pimentel. Toda a gente estava sentada na pequena capela, com poucos lugares mais do que os suficientes para albergar a guarnição, então sentada com os poucos bancos que havia disponíveis e começando a ouvir as primeiras palavras que o sacerdote designado para celebrar a missa, ou melhor o frade franciscano que conseguiram convocar para assumir a celebração – uma vez que todos os restantes sacerdotes estavam ocupados nas suas respectivas paróquias. Estava o referido sacerdote nas exéquias de um soldado da artilharia falecido no último ano, dando graças a todos pelo ano que decorreu, quando de repente, os Altíssimos decidiram entrar também na celebração e então eis que por todo o lado se sentiu tremer. Desde os poderosas e pesadas muralhas do forte até às árvores mais frágeis abanavam que nem umas doidas sacudidas por espíritos invisíveis. Por 30 breves seguintes tudo vibrava: mesas, cadeiras, crucifixos e onze homens apanhados de surpresa dentro de uma minúscula capela, quando deviam estar a dar Graças a Todos os Santos pelo ano decorrido, quando em vez de paz o que receberam foi uma plena artimanha do diabo !

Parecia que do Interior da terra  se erguia um gemido amedrontador que tinha feito troar toda a fortaleza e ainda se ouviam as águas a revolverem-se no fundo do poço que existia dentro do Forte. Toda a gente assustada, como é natural, onze pessoas vieram imediatamente para fora, tentando ainda não perder as suas cabeças recobrando os seus pensamentos e poder tratar-se de um ataque convencional ao forte: estariam aí piratas que dispararam canhões contra o forte. Mas tal não podia ser possível, ninguém ouvira qualquer som que fosse fora o agitar de todas as fundações do forte.

Quando de repente olharam mais à volta, eis que notaram que uma das rampas de acesso aos baluartes tinha desabado e ao longe pareceu ouvir-se aquilo que parecia ser um silvo de algo que vinha de longe do mar, que a princípio parecia ser algo muito indistinto. O franciscano padre improvisado, era um frade dos seus trinta anos, estava histérico e não conseguia articular coisa e coisa, repetindo sempre a mesma frase: : “Salvem-se, salvem-se, pobres almas do Diabo! Veio o Juízo final e vamos ser todos condenados para a danação eterna”.

Ao princípio, todos os soldados tentaram sossegar os ânimos começando pelo cabo e sargento-de-armas e ainda entender o que se tinha passado, quando ao longe, num troar incessante, ouvi-se o mar ao fundo o que parecia o som em crescendo do marejar . Correram todos os homens pela única rampa que restava – já que a outra tinha desabado – e a igreja não tinha janela para o Mar  – quando finalmente chegaram lá acima puderam ver o que parecia ser uma enorme muralha azul-marinha a cintilar ao sol e a aumentar de tamanho a cada segundo que passava, e avançando a toda a velocidade na direcção da Terra, primeiro parecendo apenas um traço azul escuro a alargar a linha do horizonte, mas ao avançar, revelando ser uma enorme muralha azul-marinha avançando a toda a velocidade parecendo que não iria ser detida pelo frágil areal da Ilha-Barreira que estava entre a laguna e o Mar. Os soldados perante mais uma artimanha do demónio e para a qual não haviam sido treinados desataram a fugir para todos os lados. Do governador, que deveria ser o homem que os deveria por todos de volta ao sentido, ninguém sabia: só se ouviu o barulho do cavalgar do único cavalo que estava nas estrebarias disponível a fugir desenfreadamente e a fechar com estrondo o portão do forte através de si: era o governador Vicente Pimentel: achou de dali devia fugir o mais depressa que pudesse, pouco importando a vida dos seus subordinados. Provavelmente, pensou, terem desenrascado um jovem frade franciscano teria causado a Ira do Senhor, que em, castigo, decidiu entregar todas as almas que estavam a ouvir a almas dada por aquele frade que devia ser um feiticeiro e não um representante idóneo para o sacerdócio.

Eis que para acalmar os ânimos, o sargento disse: já fui marinheiro e para subsistir a uma tormenta o melhor é amarrar-nos aos mastros da embarcação: mas o forte não era uma embarcação embora parecesse estar em vias de o parecer vir a ser quando a grande onda marinha avançasse para dentro de Terra. Mas onde iriam arranjar uma corda e um mastro naquele forte. Qual seria o objecto daquele forte construído havia 80 anos mais firmemente incrustado na crosta terrestre que funcionasse como o mais sólido dos mastros de um barco ? Na falta de tempo para pensar todos os homens decidiram usar o pequeno gradeamento que ocupava uma pequena abertura na muralha sul do Forte. Agarraram-se todos uns aos outros como um cordão humano à espera da chegada do pior. Tentaram acalmar-se e aguardar a chegada da Onda da Ira Divina, que era o que o pobre frade não parava de lhe chamar! Mas quanto todos os soldados viram o pobre frade enlouquecido a querer trepar pela parede dos aposentos do governador para chegar ao telhado acima, recearam o pior pelo homem. De qualquer forma por todo o lado viam-se bandos de toda e qualquer espécie de aves: desde gaivotas, maçaricos, pombos, melros, estorninhos, garças e sabe-se lá que mais que outro género de passarada a berrarem que nem doidas e a esvoaçar sem rumo algum. Parecia que naquele momento, o Fim do Mundo, e na falta de um Noé e uma arca que as recolhesse para sobreviverem ao dilúvio se encontravam à procura de um profeta que lhe assumisse os papéis: foi o que o doido frade pensou: “Aves, venham salvar-nos, levem-nos por esses ares fora, mas para longe desta Onda de Fúria Divina!”.

Ao longe a Onda temível – o dilúvio enviado por Nosso Senhor limpar a terra de todos os pecadores – estava cada vez mais próxima. Mas por pouco tempo os soldados viram a água da Ria desaparecer de frente das suas vistas, como uma maré vazia em passo acelerado a ter lugar diante dos seus olhos. Parecera que as águas da ria assustadas perante o avanço da Onda da Fúria Divina tinham também fugido e por instantes os soldados puderam ver o que parecia ser os escolhos de uma velha nau abandonada, um galeão talvez, esquecido quem sabe por 200 anos no fundo da Ria. Mas foi de pouco tempo o seu espanto, pois lá ao fundo a Onda avançava a toda a força, e em menos de nada galgou a frágil duna da Ilha e avançou com ímpeto, e o seu próximo alvo iria ser a primeira construção construída por um homem em Terra – estaria o Forte de São João da Gomeira preparado para aguentar o assalto a Onda que ia acabar com todos os pecadores ? Mas o que distraiu por segundos os homens foi ver a onda a irromper pela barra que a ilha tinha aberto a leste – por graça de Deus a Barra já não estava em frente ao forte em frente ao qual havia sido construído havia 75 anos ! E foram a ver a Onda atirar-se com toda a força a embater nas falésias de arenito exposto. Mesmo assim uma pequena parte da Onda ainda conseguiu galgar o talude e as pequenas pedras de calçada que sustentavam o terraplanado aonde o forte fora alicerçado e por momentos a água chocou contra as paredes do Forte com toda a força mas não avançou mais para dentro – até por graça da existência de um fosso em volta. E então o Forte ganhou um fosso cheio de água salgada por uns tempos. “Milagre!” Já se gritava ! Milagre !  Apesar de a onda não ter conseguido ultrapassar a altura a que forte estava levantado e sabe-se lá que mais. Os soldados, habituados a operar peças de artilharia e disparar espingardas, mal podiam chorar de alegria abraçados uns aos outros. Uma vez que não tinham trazido armamento com o uniforme naquele, pois era dia santo, correram a experimentar os canhões e a disparar que nem um doidos para celebração. No meio disto tudo esqueceram-se do pobre frade que ainda guinchava que nem um doido lá em cima do telhado dos aposentos do Governador ? E por falar do Governador, aonde teria ido ele parar ? Do excelentíssimo sr. Vicente de Fonseca Pimentel !? Parece que pela fúria louca que ia ao cavalgar por esses campos fora e não respeitar em seguir as estradas acabou por embater com a cabeça contra uma oliveira, cair da montada e desmaiar. Quem o encontrou mais tarde a balbuciar como um louco prostrado de barriga para o ar foi um camponês que encontrou a sua montada à solta a calcocorrear nos seus campos e quis ir devolvê-lo ao dono.

Forte São João da Barra, Cabanas de Tavira, Algarve, Portugal by Maximilian Xavier

Acontece que Tavira e o Leste Algarvio foram menos afectados pelo tsunami que emanou do enorme sismo que agitou toda a Europa em 1 de Novembro de 1755. Afinal tinha ocorrido outro em Tavira havia 33 anos (1722) e que teria causado muito mais estragos e só pessoas com mais de 40 anos o recordavam, de modo que talvez não o nosso frade, que só tinha 30 anos, e a maioria dos soldados de artilharia também não estar acima desse limite, pela maneira como foram apanhados de surpresa.

A orientação da costa, pelo facto de ser de sueste – noroeste (SE-NW) , o que fazia com que a “crista do tsunami” entrasse com um ângulo mais afastado de 90º em relação à linha de costa do que em Lagos ou Lisboa pode também ter ajudado nesse facto. Anos depois um inquérito mandado fazer pelo Marquês de Pombal resultou de que apenas uma pessoa teria falecido em toda a cidade de Tavira e seu termo. Terá sido por um dano causado pelo terramoto ou por um acto de desvario , tal como o frade e o governador tiveram, mas por sorte nada lhes aconteceu !? Isto é só uma história saída de uma imaginação, mas quando olho para as muralhas do velho forte agraciado a São João Baptista, fico a pensar nos seus 350 anos de história,  e todas as histórias e personagens que por lá terão passado, esquecendo, é claro, o que se tem passado neste último ano,  e que não lhe faz minimamente juz.